A partir deste título, pretendo abordar no encontro História e Artes Cênicas: memória do efêmero dois aspectos de uma pesquisa mais extensa, que desenvolvi como tese de doutorado em História. O seu objetivo central foi compreender como se constituíram o espetáculo cinematográfico e o público de cinema em Porto Alegre. Estamos falando de um processo cuja primeira fase se desenvolveu entre 1896 e 1908. Pretensioso? Sim. Mas inacessível não. Outra potencialidade: era e é um projeto discutível, mas no melhor sentido da palavra. Pois é essa a contribuição que pretendo trazer ao debate: o relato de uma experiência de pesquisa histórica sobre um processo cultural verificado na virada do século XIX para o XX, num contexto em que não havia rádio ou televisão, sendo a imprensa diária o veículo hegemônico de comunicação, informação e formação da opinião pública. O cinema foi apresentado aos porto-alegrenses em 1896 como uma invenção técnica que permitia a projeção de um novo gênero de imagens, as “vistas animadas”. Ele era então uma atração sem futuro definido. E por isso mesmo foram múltiplas e simultâneas as possibilidades de sua exploração para fins de entretenimento, embora a sua oferta tenha sido marcada pela descontinuidade e pela fragmentação até 1908. Os interessados, que se multiplicaram e qualificaram a sua experiência como espectadores ao longo dos anos, na medida que estreitaram o seu contato com as projeções cinematográficas, podiam assisti-las nos teatros, nas salas especializadas ou mesmo ao ar livre. Os espetáculos podiam ser exclusivamente de projeções ou contar com outras atrações, de outros gêneros de diversões. Imperava a diversidade, a necessidade de constante atualização e reconfiguração dos programas, de modo a torná-los atrativos a um público em formação num contexto de grande concorrência. A heterogeneidade da exibição também facultou um acesso socialmente diversificado do público ao cinema e possibilitou uma grande variedade nas formas de sua apropriação pelos espectadores, conferindo uma dinâmica ímpar ao processo de afirmação do cinema como nova prática cultural. Ou seja, o cinema não surgiu como um gênero espetacular acabado. Ele tampouco foi uma prática inédita enquanto espetáculo de projeções, considerando-se que foi precedido de outra tradição espetacular, que proporcionou aos porto-alegrenses uma experiência de três décadas como espectadores de projeções públicas e pagas antes do seu surgimento. O cinema representou continuidade e ruptura em relação à tradição que o precedeu, aos modos de representação e percepção visual e às práticas espetaculares que lhe foram contemporâneos. Ao longo de sua primeira década de existência, ele deixou de ser apenas uma nova invenção técnica para se constituir e afirmar como novo gênero espetacular, autônomo de outras práticas culturais com as quais estabeleceu diferentes formas de associação, entre as quais o teatro. Assim, fica o convite para pensarmos e discutirmos juntos os limites e as potencialidades do fazer histórico quando o interesse da pesquisa são as práticas culturais cotidianas, estabelecidas e transformadas na efemeridade e dinâmica dos espetáculos públicos. A observação da qualidade das relações que o cinema entreteve com o teatro, enquanto espaço físico e práxis espetacular, aparece com um aspecto de um processo maior e mais complexo que diz respeito à afirmação das novas formas de expressão e apropriação visual do mundo num contexto da intensificação da circulação das imagens ao nível do cotidiano.
Alice Dubina Trusz
A pesquisa que deu origem a este texto foi publicada sob o título “Entre lanternas mágicas e cinematógrafos: as origens do espetáculo cinematográfico em Porto Alegre. 1861-1908”. O livro foi lançado em novembro de 2010 como resultado da premiação da tese de doutorado homônima, defendida junto ao PPGHistória da UFRGS e reconhecida pelo MINC/SAV por sua excelência como Pesquisa em Cinema e Audiovisual brasileiros.
Link para o livro: AQUI
Link para a tese: AQUI
Fotos:
1) O Theatro São Pedro , à esquerda, foi o espaço preferido para a realização dos espetáculos públicos de projeções de lanterna mágica entre 1861 e 1896 e, na década seguinte, de projeções cinematográficas. Fotografia, 1881, autor desconhecido, Acervo Fototeca Sioma Breitman/MJJF.
2) Na Exposição Estadual de 1901, promovida pelo Governo do Estado no local atualmente ocupado pelo Campus Central da UFRGS, houve quatro temporadas sucessivas de exibições cinematográficas ao ar livre. Na imagem, vê-se a cabine de projeção e a tela gigante trazida pelo argentino Henrique Sastre, aos fundos da atual Escola de Engenharia. Fotografia, 1901, autor desconhecido, Acervo Fototeca Sioma Breitman/MJJF.
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